
Por Sílvio Ribas
O Senado deu início nesta quarta-feira (24) a uma maratona legislativa ao instalar a comissão temporária responsável por analisar o Projeto de Lei (PL) 4/2025, que promove a mais ampla e polêmica reforma do Código Civil em mais de duas décadas. A proposta, entregue em janeiro, muda quase 900 artigos e agrega mais de 300 dispositivos ao estatuto em vigor desde 2002.
O cronograma, já adiantado pelo relator Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), prevê que o parecer final seja apresentado até junho de 2026 — ano eleitoral e de fim de mandato para dois terços (54) dos senadores. A comissão é presidida por Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ex-presidente da Casa e, também, autor formal do projeto, tendo Efraim Filho (União-PB) como o seu vice-presidente.
A comissão temporária é formada por 11 titulares e 11 suplentes de vários partidos, entre eles Soraya Thronicke (Podemos-MS), Weverton (PDT-MA) e Fabiano Contarato (PT-ES). O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), aliado de Pacheco, presenciou a eleição dos membros e exaltou o papel estratégico e histórico do colegiado. Ele deu prazo de, no mínimo, 60 dias para concluir os trabalhos, podendo chegar a oito meses.
Pacheco busca protagonismo político e jurídico com novo Código Civil
Embora Pacheco frise que o projeto mantém o texto elaborado em 2024 por 37 juristas convidados por ele, quando presidia o Senado, e liderados pelo ministro Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a sua movimentação sugere desejo por protagonismo. Advogado, pré-candidato ao governo mineiro e cotado para o Supremo Tribunal Federal (STF), ele será associado à agenda estruturante, apesar das resistências que ela desperta. A ideia é evidenciar esse legado de seu mandato.
O relatório produz mudanças polêmicas nas áreas de família, empresarial, contratos, herança, propriedade, direito dos animais e direito digital. O recente anúncio da formação da comissão temporária reacendeu as críticas. Enquanto ainda serão estabelecidas sub-relatoras para tratar dos diferentes capítulos do chamado Novo Código Civil, incluindo um extra voltado a questões cibernéticas, Pacheco já acena para a chance de deixar impasses para avaliação posterior.
Entre as controvérsias do projeto estão o reconhecimento automático de paternidade sem teste de DNA, a oficialização da multiparentalidade, a substituição da expressão “homem e mulher” por “duas pessoas” em casamentos, o divórcio unilateral em cartório e a previsão de herança para parceiros extraconjugais. Ativistas alertam que as alterações, sem amplo debate social, relativizam vínculos familiares e geram insegurança jurídica.
Mudanças no direito digital apontam para a regulação das plataformas digitais
Um foco importante de disputa no debate da reforma do Código Civil é o novo capítulo de Direito Digital. O texto prevê revogação expressa do artigo 19 do Marco Civil da Internet, transformando em lei a responsabilização de plataformas por conteúdos de terceiros mesmo sem ordem judicial, como recentemente decidiu o STF.
O projeto ainda resgata o “direito ao esquecimento”, permitindo a desindexação de conteúdos, o que críticos veem como risco de apagamento de reportagens sobre corrupção e registros históricos. Pacheco, no entanto, insiste que se trata só da atualização necessária diante de transformações sociais, culturais e tecnológicas, citando a revolução digital. “É a largada para o Congresso entregar à sociedade um Código Civil moderno”, declarou.
Marcus Deois, diretor da consultoria Ética, disse que chamou a sua atenção a forte articulação na terça-feira (23) em favor da instalação do colegiado, após quase oito meses de espera por tramitação. “Isto mostra alinhamento de forças e de interesses”. Ele acredita que haverá muita discussão em torno da proposta que tem o apoio do STF, puxada, sobretudo, pela oposição.
“Os assuntos do código são complexos, sem consenso em muita coisa, sendo então impossível cravar quando ele será votado”, alerta ele, ao avaliar a meta da comissão temporária de aprovar o relatório no primeiro semestre de 2026. “Dificilmente teríamos a conclusão dos trabalhos da comissão e a definição do projeto ainda este ano, em razão do pouco tempo e do peso de cada tema”, acrescenta o cientista político Ismael Almeida.
Juristas apontam para a necessidade de deixar claro a vida como direito natural
Especialistas veem no PL 4/2025 uma ameaça a pilares tradicionais do direito e à segurança jurídica, além de favorecer interpretações ideológicas. Mas Pacheco e outros defensores do projeto entendem que ele consolida temas já pacificados pela jurisprudência e pela doutrina.
“Assim como atuamos junto ao grupo de juristas que elaborou o anteprojeto — contribuindo para melhorar o texto e retirar trechos que considerávamos muito ruins — queremos agora dialogar com os senadores da comissão para apontar dispositivos que, a nosso ver, atentam contra a dignidade humana”, avisa a advogada Andrea Hoffman, presidente-executiva do Instituto Isabel.
“Nosso compromisso é reavaliar todo o projeto e trabalhar em conjunto com os senadores para buscar ajustes necessários. Já houve avanços, mas ainda há muitos pontos a serem revistos. Identificamos a necessidade de aprimorar a visão do Parlamento em áreas como a parte geral, o direito de família e as sucessões, sempre sob a ótica da dignidade humana”, sublinha.
Para Andréa, o texto ideal deve deixar explícita a centralidade do direito natural, em especial o direito à vida, que serve de fundamento para os demais — não apenas no capítulo de família, mas também em temas como direito digital. “É fundamental que os parlamentares estejam plenamente conscientes do alcance das suas decisões. Por isso, acompanharemos tudo de perto cada etapa e atuaremos de forma construtiva”, disse.
Ao fim do prazo da comissão, os senadores deverão aprovar parecer pela aprovação e encaminhá-lo ao presidente do Senado. A tendência é de ele ir diretamente ao plenário, sem passar por comissões permanentes. No plenário, o texto requer apoio da maioria simples para avançar. Se aprovado, segue para a Câmara, que repetirá a análise em comissões e em plenário. Havendo mudanças, volta ao Senado para a deliberação final.