O Judiciário pode obrigar o MP a promover a ação penal pública?

O Judiciário pode obrigar o MP a promover a ação penal pública?



Porto Velho, RO - Recebi com surpresa a notícia de que a Ministra Rosa Weber não arquivou promoção de arquivamento de procedimento instaurado para apuração de crime de prevaricação, que teria sido praticado pelo Presidente da República no caso das vacinas Covaxin.

Tem sido constante a investida de alguns políticos contra o procurador-geral da República por promover o arquivamento de procedimentos investigatórios e não determinar a investigação em algumas representações que lhe são endereçadas para apuração de supostos crimes cometidos por integrantes do governo federal, notadamente pelo presidente da República.

Ocorre que o Ministério Público é o titular da ação penal pública e somente ele, por um de seus membros, pode promover a ação penal mediante o oferecimento de denúncia. Claro que, com exceção de uma hipótese, há dentro da própria instituição sistema de controle quanto à promoção de arquivamento. Não concordando o magistrado com o pleito, o procedimento será encaminhado ao procurador-geral de Justiça ou à Câmara de Coordenação e Revisão (a depender do ramo do MP), que poderá determinar novas diligências investigatórias, designar outro membro do Ministério Público para oferecer denúncia ou homologar a promoção de arquivamento por concordar com as razões apontadas na promoção.

A exceção é quando a promoção de arquivamento é oriunda do procurador-geral da República. Nessa hipótese, não há mecanismo de controle e as cortes superiores são obrigadas a homologar a promoção de arquivamento, por não ser possível obrigar o MP a oferecer denúncia por entender não haver elementos para tanto, como ausência de indícios suficientes de autoria ou prova da materialidade, ser o fato atípico (não constituir crime) ou outro fundamento legal qualquer.

Com efeito, há mecanismos próprios no sistema processual acerca da instauração, tramitação e conclusão de investigações.

Por isso, descabido qualquer tipo de pressão contra membros do Ministério Público para que ofereçam a ação penal ou promovam o arquivamento, tanto que esses agentes políticos possuem diversas garantias constitucionais para que coações indevidas desse tipo não surtam efeito.

Não há como obrigar o Ministério Público a promover a ação penal. Ele é o titular da ação penal pública, conforme mandamento expresso previsto no artigo 129, I, da Constituição Federal.

O Magistrado, seja de qual grau for, não pode investigar e nem determinar medidas cautelares sem pedido expresso do Ministério Público ou representação da Autoridade Policial na fase de investigação. E tampouco pode ele mesmo propor a ação penal.

Nosso sistema processual é o acusatório. Por esse sistema existe nítida divisão entre o órgão acusador e o julgador. Enquanto a acusação é, em regra, formulada por um órgão estatal (Ministério Público), o poder Judiciário é o responsável pela aplicação da lei e a solução dos conflitos entre o Estado e o particular. As partes estão em igualdade de condições, sobrepondo-se a elas, como órgão imparcial de aplicação da lei, o Juiz. Como corolário lógico desse sistema, vigoram os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV), além das garantias da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV), do acesso à Justiça (art. 5º, LXXIV), do Juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII) e do tratamento paritário das partes (art. 5º, caput, e I), estando vedado ao Juízo instaurar ação penal de ofício (“ne procedat judex ex officio”) e investigar na fase pré-processual, usurpando a função da polícia judiciária (art. 144 da CF) e do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública (art. 129, I, da CF), que também possui o poder investigatório criminal, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (RE 593727/MG – Rel. Min. Cezar Peluso – Tribunal Pleno – j. em 14.05.2015).

Interessante que a Lei nº 13.964/2019 introduziu no Código de Processo Penal, no capítulo que trata do juiz de garantias, dispositivo específico que consagra no direito objetivo o sistema acusatório de processo, o que já era reconhecido pela doutrina e jurisprudência pacíficas, por interpretação decorrente do nosso sistema constitucional e processual. Diz a norma: “Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

Por força de liminar em ação direta de inconstitucionalidade que questiona o juiz de garantias no sistema processual, foram sustados os efeitos desse dispositivo e de vários outros no capítulo (STF: ADI 6.299 MC/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 22.01.2020).

Referida decisão liminar foi proferida por conta de questionamento da constitucionalidade do juiz de garantias e não desse dispositivo específico, cujo fundamento já é reconhecido de forma praticamente unânime em todos os tribunais.

Isso quer dizer que, ao julgar o mérito do pedido nesta ADI, muito provavelmente referida norma voltará a ter eficácia.

Tal conclusão é reforçada por decisão do Min. Dias Toffoli, na qualidade de presidente da Corte, sobre o juiz de garantias, na qual concedeu parcialmente a liminar apenas para suspender a eficácia de alguns dispositivos por tempo determinado, sem qualquer menção ao artigo 3º-A, do Código de Processo Penal. Fundamentou o Ministro “Nossa ordem constitucional consagra, a partir do art. 129, inciso I, da CF/88 – que atribui ao Ministério Público a titularidade da ação penal –, o sistema acusatório, o qual se caracteriza pela nítida divisão entre as funções de investigar e acusar e a função de julgar, sendo o réu sujeito de direitos” (STF: ADI 6.298 MC/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. em 15.01.2020).

Note-se, assim, que já há norma positivada, ainda que suspensa por decisão liminar, que impede a iniciativa do magistrado na fase investigatória e a substituição da acusação na fase processual, acolhendo expressamente o sistema acusatório de processo.

Cada ator processual tem a sua função e em nada contribui para o Estado Democrático de Direito que um órgão se imiscua em outro, haja vista o princípio fundamental da separação dos poderes da República (art. 2º, CF), de modo a haver a perfeita harmonia entre eles e a fiscalização de um ao outro dentro dos limites traçados pela Constituição Federal.

Fonte: César Dario Mariano Da Silva
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