Ativismo judicial - Democracia é quando o Supremo manda nos idiotas (nós)

Ativismo judicial - Democracia é quando o Supremo manda nos idiotas (nós)


Live promovida pelo site Jota com a participação do influenciador Felipe Neto e do ministro do STF Luis Roberto Barroso, em julho de 2020.| Foto: Reprodução/ YouTube


Porto Velho, RO - O leitor não sabe o que é democracia? Democracia é quando o Supremo (Tribunal Federal) manda e os idiotas obedecem. Há algum tempo atrás, achava-se que nós, os idiotas, tínhamos direito a nos associar em partidos políticos e a votar em representantes. Mas vocês sabem como é: o povo não desconstruiu os preconceitos, vota em populistas de extrema direita, pratica discurso de ódio. Se o leitor não acredita, eu provo agora. Você, homem, gosta de mulher? Então você se sente no direito de dizer que não gosta de ter contato sexual com pênis alheio, não é? Pois bem: tem que desconstruir essa transfobia. O Supremo decidiu que transfobia é crime. Mulheres com pênis também são mulheres; negar isso é transfobia. Assim, é bom se emendar logo, se desconstruir, senão o Supremo te pega numa esquina da internet, em flagrante perpétuo. Macho que é macho gosta de mulher, tenha ela um pênis ou não. E gay que é gay tem que gostar de vagina, sim, se for a vagina de um homem trans.

Há muito o que desconstruir. Segundo uma lenda datada, o Brasil tem três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Os dois primeiros são eleitos; o último é que não. Por isso mesmo, o último não carrega a mácula de ter sido escolhido pelos idiotas e pode se portar como sua (nossa) palmatória. Só ontem, o Judiciário deu dois tapas na cara do Legislativo: em Curitiba, descassou o mandato do vereador Renato Freitas. Em Brasília, os ministros convidados deixaram o Senado a ver navios após serem convidados a responder sobre o ativismo judicial. O convite havia sido feito pelo senador Girão, do Ceará. Após o bolo, o senador tuitou: “ ‘SUPREMACIA’ SEM APREÇO AO PAÍS: Ministros Barroso e Moraes faltam a debate público, ignorando juristas na audiência histórica sobre ativismo do STF. Preferem palestras no exterior a dialogar no Senado brasileiro. Irei no caminho oposto: escalada democrática! Já tem outra reunião aprovada. Paz e bem!” (ajeitei a escrita truncada para caber nos limites de caracteres).

Paulo Eduardo Martins, deputado federal pelo Paraná, também fez um comentário certeiro: “Afinal, em termos de importância, o que é o Senado brasileiro diante de uma live com o Felipe Neto?”

Somos todos Felipe Neto

De fato, o Supremo tem suas preferências. O povo altivo não pode lhe cobrar satisfações por meio dos seus representantes eleitos – os senadores. Mais apropriado é ir para os EUA e para a Europa ficar palestrando às elites sobre as ameaças populares à democracia. Mais apropriado é participar de live com o imitador de focas infantojuvenil. Ainda assim, volta e meia o Supremo se manifesta pelo Twitter a fim de esclarecer a plebe.

A última foi um videozinho ao estilo Tik Tok. O texto dizia: “Tá na dúvida sobre o que é liberdade de expressão ou discurso de ódio? A gente te ajuda”. Abaixo, uma mulher adulta, portadora da mesma idade mental duvidosa que Felipe Neto, decidia se ia para a esquerda ou para a direita. À esquerda, no topo, estava o dizer “discurso de ódio”; à direita, “liberdade de expressão”. No centro, na altura da barriga da mulher, aparecia a coisa a ser categorizada. A categorização era expressa pela caminhadinha, feita com caras e bocas. Eis as categorizações:

1) Discurso de ódio: propagar fake news; intolerância religiosa; preconceito racial; homofobia; manifestação de ódio.

2) Liberdade de expressão: respeitar a opinião alheia; manifestar sua fé; defender posicionamentos políticos; repassar informações verdadeiras.

Só mesmo gente com uma cabeça de Felipe Neto para aceitar que o vídeo tenha esclarecido algo. Todo Natal, as redes sociais ficam cheias de gente manifestando ódio às passas. No zap-zap, um sem número de “fenômenos sobrenaturais” completamente destituídos de aspecto político são repassados (eu mesma dei uma de faquichequer ao receber imagens de um homem que vendera a alma ao diabo e por isso andava entre os carros sem projetar sombra. Era só olhar com atenção que se enxergava a sombra fininha do homem; as sombras dos carros são mais visíveis por eles serem mais largos.) Agora há pouco apareceu no meu feed uma manchete da Folha segundo a qual Jorge Vercillo refuta Darwin e “nós” (quem?) somos extraterrestres. Se aceitássemos o videozinho como jurisprudência, entenderíamos que vídeos de chupa-cabra, diatribes natalinas contra as passas e teorias extravagantes de celebridades são discurso de ódio. Mas sabemos – eu, você e o STF – que não é assim. Portanto ou o STF mente, ou eu sou uma idiota por não conseguir apreender a sua lógica.

Eu, você e o STF sabemos que as categorias de "posicionamento político" e "racismo" não são mutuamente excludentes (o nazismo era um posicionamento político racista); "manifestação religiosa" e "homofobia" tampouco são mutuamente excludentes. Algumas manifestações políticas infringem normas criadas por legisladores eleitos brasileiros e bem aceitas pela sociedade brasileira: vide o caso da criminalização do racismo, pisoteada pela decisão do STF que permite cotas raciais.

Algumas manifestações políticas, porém, não infringem tais leis ("leis do legislativo", digamos), mas infringem a "jurisprudência do STF" (ou antes "lei do judiciário"). Esse é o caso da criminalização da homofobia. Na verdade, antes da canetada do STF, entendia-se como consequência legítima da liberdade religiosa o direito a condenar o dito "comportamento homossexual" dentro das igrejas. Condenação, aliás, milenar, enraizada na própria religião que deu origem ao nosso povo. Com que legitimidade o Supremo impõe de cima a baixo as suas convicções minoritárias e elitistas?

De todo modo, em nenhum caso listado no vídeo se encontra a situação de Daniel Silveira. Colocar-se a favor do AI-5 e do fechamento do STF é adotar um "posicionamento político". Este não é nem racista, nem homofóbico, nem afirma nenhum fato, de modo que tampouco é fake news. Caso se queira dizer que esse posicionamento político é fruto de ódio, resta perguntar se por acaso o Supremo não odeia todos aqueles que considere “radicais de extrema direita”.

Last, but not least, reafirma-se o Ministério da Verdade. Se o Supremo considera “discurso de ódio” toda informação falsa, e “liberdade de expressão” toda informação verdadeira, resta concluir que seus ministros têm sozinhos o poder de discriminar o que é verdadeiro e falso. Toda investigação científica ou jornalística poderá ser criminalizada ex post facto, já que no fim do processo investigativo descobre-se que alguém (às vezes o próprio cientista ou jornalista) adotara uma hipótese falsa. Se eu afirmei algo falso no passado, que todo o mundo achava ser verdadeiro (por exemplo, que o vírus da Covid só podia ter origem natural), isso faz de mim, e de todo o mundo, uma criminosa. O Supremo é, mesmo, o Onisciente, pois não está sujeito ao erro.

Como é Onisciente, nada mais justo que nos tomar por um bando de Felipes Netos.

O que querem?

Creio que o canadense Mathieu Bock-Côté tenha sido bastante esclarecedor ao descrever o cenário com o qual estamos lidando: Ocidente afora, há um golpe em curso, no qual as elites trocam sorrateiramente a democracia liberal pela dita democracia diversitária. Nesta, não se admite a legitimidade da vontade popular; fala-se somente em termos de direitos fundamentais a serem assegurados por juristas de plantão. Diz ele: “A legitimidade democrática passaria, a partir de agora, por um reconhecimento da soberania do direito. Ainda mais porque os direitos vêm legitimar, na prática, um vasto empreendimento de engenharia social a ser exaltado, em oposição às instituições, tradições e aos costumes. Embora a soberania popular não tenha sido oficialmente abolida, é claro, encontra-se agora reduzida a uma porção mínima do poder político e já não está investida de nenhuma carga existencial. O poder democrático é condenado à impotência. Um constitucionalismo […] será chamado a exercer uma soberania sobrepujante sobre o corpo social, justamente para pilotar sua transformação igualitarista na linguagem do direito. […] Uma mudança de regime se realiza, sorrateiramente” (O multiculturalismo como religião política, p. 182).

Os partidos estão estrangulados; o Legislativo, desrespeitado de todas as maneiras possíveis. A discussão política está criminalizada. Mas ainda bem que temos democracia, porque o Supremo manda em nós e democracia agora é isso.

Fonte: Por Bruna Frascolla
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