
Porto Velho, RO - A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, está se tornando um expoente da novilíngua. Ao proferir seu voto no julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, ela conseguiu, pela segunda vez, condenar a censura enquanto votava exatamente para promover aquilo que criticava. Se em 2022 ela alegou uma “situação excepcionalíssima” para censurar um documentário da produtora Brasil Paralelo – documentário este cujo conteúdo ela desconhecia, assim como todos os demais ministros do TSE que participavam do julgamento –, desta vez ela ajudou a derrubar um texto legal perfeitamente constitucional para colocar em seu lugar um modelo que resultará em uma ampliação voraz da censura na internet.
Mais incrível que o malabarismo jurídico adotado pela ministra foram os termos por ela usados para justificar o que estava promovendo. E não nos referimos ao já imortalizado “discurso de ódia”, mas a uma outra expressão bem mais reveladora do sentimento que move os ministros. “A grande dificuldade está aí: censura é proibida constitucionalmente, eticamente, moralmente, e eu diria até espiritualmente. Mas também não se pode permitir que estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos”, afirmou, desafiando a lógica. Afinal, para que haja tirania, é preciso que existam duas classes de pessoas: os que mandam com poder ilimitado e os que obedecem sem a menor possibilidade de reagir. Onde todos são tiranos, no fim ninguém é tirano.
Cármen Lúcia não enxerga os brasileiros como cidadãos, sujeitos plenos de direitos, adultos com os quais se pode argumentar no livre mercado de ideias, mas como estorvos
O “pequeno tirano” da ministra nada mais é que uma pessoa livre para se expressar sem medo, obedecendo apenas aos limites mínimos e razoáveis que devem nortear o exercício da liberdade de expressão. Antes tivéssemos, de fato, um país com 213 milhões dessas pessoas, mas tanto a frase de Cármen Lúcia quanto a prática corrente do Supremo mostram que os ministros têm horror a pessoas que se expressam fora daquilo que eles consideram aceitável.
O modelo defendido pela ministra e mais sete de seus colegas acaba com esse “problema”. Não teremos mais centenas de milhões de “pequenos tiranos” ilusórios, mas uma casta de tiranos reais, enquanto uma enorme massa de pessoas se verá censurada sem ter a quem apelar. Essa casta tem militantes prontos a notificar os provedores de internet e mídias sociais sobre qualquer publicação que lhes soe ofensiva; promotores prontos a denunciar quem disser qualquer coisa que destoe dos cânones dos “consensos” forjados; e juízes prontos a condenar brasileiros por alegações vagas como “ataque à democracia” ou “discurso de ódio” – emulando, assim, aqueles que já censuram sem pudor, em decisões secretas embasadas em relatórios que “usam a criatividade” e feitos para aplacar supremas “cismas”. Em resumo, a frase de Cármen Lúcia poderia até soar como uma ode à liberdade – afinal, ninguém gosta de tiranos, nem de estar sob o jugo deles –, mas não passa da defesa de uma reserva de mercado.
E é típico do tirano enxergar os demais como seres incapazes, nascidos para serem oprimidos enquanto pensam estar sendo protegidos. Cármen Lúcia diz querer que não caiamos vítimas dos “pequenos tiranos” que encontramos todos os dias, mas não propõe para isso a via do empoderamento, fortalecendo nossas liberdades e direitos para podermos resistir à tirania; em vez disso, prefere suprimir o discurso livre indiscriminadamente. Também no TSE, e também em outubro de 2022, Ricardo Lewandowski havia dado outra mostra dessa postura que afaga enquanto usa o porrete: “Estamos diante de fenômeno novo, que vai além das fake news. O cidadão comum não está preparado para receber esse tipo de desordem informacional”, afirmou para censurar outro vídeo da Brasil Paralelo que não trazia nenhuma informação falsa sobre os escândalos envolvendo Lula e o PT. Os ministros, mui nobremente, queriam apenas proteger os brasileiros, esses incapazes de pensar por conta própria, da exposição a fatos verídicos que pudessem levar a conclusões desagradáveis...
Quem faz esse tipo de afirmação não enxerga os brasileiros como cidadãos, sujeitos plenos de direitos, adultos com os quais se pode argumentar no livre mercado de ideias, mas como estorvos: pessoas que ousam ter opinião própria – e, frequentemente, a opinião “errada” –, que discordam, e que por isso são um obstáculo a determinados projetos de poder, escancarados ou ocultos. Pessoas que deveriam entender de uma vez por todas que não são soberanas, pois soberanos são apenas entes abstratos como o Estado ou “o direito brasileiro”, como também disse Cármen Lúcia. É gente que precisa ser disciplinada – ou “recivilizada”, nas infelizes palavras do “iluminista” Luís Roberto Barroso –, que tem de aprender a pensar direito, e é para isso que estão aí os “editores de um país inteiro”, como disse em 2020 o ministro Dias Toffoli. São eles que nos ensinarão: censura é (dever de) cuidado; informação é desordem; e, claro, liberdade é tirania.
Fonte: Por Gazeta do Povo