Ministros não são reis: a urgência de um resgate ético e filosófico no STF

Ministros não são reis: a urgência de um resgate ético e filosófico no STF

Judiciário brasileiro cada vez mais chama a atenção de comunidade internacional e sanções surgem como possibilidade (Foto: Felipe Sampaio/STF)

Porto Velho, RO - No artigo “A crise moral do Poder Judiciário brasileiro e a integridade das instituições”, expus a tese de que a crise moral que assola o Judiciário é estrutural e compromete as bases da nossa democracia. Os debates suscitados por leitores naquela ocasião destacaram o papel central do STF nesse cenário. Por isso, decidi aprofundar agora a crítica especificamente na Suprema Corte, defendendo que a crise atual no STF é civilizacional, não apenas conjuntural ou fruto de desvios pessoais de um ou outro magistrado. Em outras palavras, o problema vai além de casos isolados: há uma ausência de virtù institucional, uma falha de caráter público no seio do Tribunal.

Essa falta de virtù no STF significa que o órgão deixou de encarnar princípios republicanos fundamentais, como imparcialidade, integridade e serviço ao bem comum. A Justiça só conquista legitimidade quando é percebida como imparcial e incorruptível, como ressaltei naquele artigo inicial. Entretanto, quando as decisões de uma corte suprema deixam de refletir princípios constitucionais e passam a responder a interesses circunstanciais, as instituições perdem sua autoridade moral e a confiança popular.

O Supremo Tribunal Federal (STF), guardião maior da Constituição brasileira, enfrenta hoje não apenas questionamentos pontuais, mas uma crise profunda de valores e finalidade. Observa-se uma erosão da virtù institucional – entendida aqui no sentido maquiaveliano de capacidade de agir com sabedoria, prudência, coragem e responsabilidade pelo bem comum – o que abala a confiança democrática na Corte. O STF carece dessas virtudes públicas essenciais e urge um resgate ético-filosófico para restabelecer sua legitimidade republicana.

É preciso primeiro esclarecer o termo “virtù”. Diferentemente da virtude em seu sentido cristão tradicional, associada à bondade moral e retidão pessoal, virtù em Maquiavel, especialmente em O Príncipe, diz respeito à capacidade política extraordinária de um líder. Trata-se de um conjunto de qualidades como sabedoria prática, prudência, bravura e até astúcia, necessárias para alcançar e manter o bem do Estado. Maquiavel não equipara virtù à virtude moral; pelo contrário, virtù refere-se à habilidade de assegurar o poder e a estabilidade do Estado, mesmo “à custa da conduta ética”. Em outras palavras, envolve saber agir de forma eficaz em prol do bem comum, ainda que isso exija decisões duras. Maquiavel elenca traços como orgulho, habilidade, força e a disposição de ser implacável quando preciso – qualidades que, usadas com retidão de propósito, serviriam para grandes realizações e para resistir aos golpes da fortuna (a sorte).

A crise de virtù no Supremo Tribunal Federal é, em última instância, sintoma de uma crise mais ampla de princípios em nossas instituições. Quando a mais alta corte do país perde a aura de imparcialidade, coerência e dedicação ao bem comum, todo o edifício republicano fica vulnerável

Importa destacar: virtù não é mera esperteza oportunista ou “vale-tudo”. Maquiavel via nela uma espécie de excelência cívica, um poder de caráter que permitia ao governante realizar feitos grandiosos em nome do interesse coletivo. Essa noção será aqui empregada como eixo conceitual para avaliar criticamente a atuação recente do STF. Perguntamos: nosso Supremo Tribunal tem agido com virtù – com prudência, coragem e senso de responsabilidade republicana – ou estaria ele falhando em encarnar essas virtudes clássicas?

No STF, o que se vê é justamente um descompasso preocupante entre dever e prática, entre o ideal republicano e a conduta real. Vários sintomas ilustram essa erosão da virtù no Supremo Tribunal Federal. São problemas já apontados por observadores e críticos, indicando um distanciamento dos ministros em relação à postura esperada de magistrados exemplares. Entre esses sinais, mas não se esgotando nesses, destacam-se:

Superexposição midiática: ministros do STF tornaram-se figuras constantes no noticiário e em eventos públicos, emitindo opiniões sobre assuntos em julgamento e cultivando protagonismo pessoal. Essa exposição exagerada fere a prudência e a sobriedade esperadas – virtudes de reserva que garantem a imparcialidade. Ao buscarem holofotes, alguns ministros arriscam politizar a imagem do Tribunal e enfraquecer a majestosidade serena que deve revestir a Justiça;

Decisões contraditórias e politicamente convenientes: o STF vem acumulando jurisprudências mutáveis conforme a conjuntura, passando a impressão de casuísmo. Ora a corte decide X, ora não-X, conforme o interessado ou o vento político. Um exemplo notório foi a mudança de entendimento sobre a prisão após condenação em segunda instância – outrora permitida, depois proibida – em timings que coincidiram com interesses de figuras políticas específicas. Tais viradas jurídicas convenientes minam a segurança do Direito e sugerem falta de coerência e firmeza de princípios, qualidades inerentes à virtù. Decidir com base em conveniência do momento, e não em convicções jurídicas sólidas, é o oposto da coragem ética esperada de um magistrado;

Ativismo judicial: frequentemente o STF tem atuado como legislador positivo, inovando onde a lei silencia ou até substituindo o Congresso em temas sensíveis. Essa tendência de ativismo judicial – negar-se a autocontenção e avançar sobre competências de outros poderes – rompe o equilíbrio institucional e a ética pública da magistratura. Já se disse que o presidente do STF alega ser “mito” o ativismo, mas na prática a corte assume funções dos outros poderes com bastante frequência. Se a intenção por trás dessas intervenções até pode decorrer de convicções nobres (como proteger direitos), o fato de ignorar os limites do próprio poder demonstra falta de prudência e de respeito institucional – uma carência de virtù republicana;

Falta de transparência e accountability: Outro ponto é a opacidade institucional. Decisões importantes muitas vezes são tomadas monocraticamente, sem esclarecimento público adequado. Os critérios de escolha de pautas, a ausência de prestação de contas clara e até inquéritos conduzidos de forma atípica (como o polêmico “inquérito das fake news” instaurado de ofício pelo próprio tribunal) alimentam a percepção de arbitrariedade. Diferente de eleitos, os ministros não prestam contas nas urnas, mas devem satisfação à sociedade por seus atos. Quando essa prestação de contas transparente falha, instala-se a sensação de que o STF opera em torre de marfim, sem controles – cenário propício a abusos e perda de confiança;

Desgaste da legitimidade popular: soma-se a tudo isso o crescente distanciamento entre a corte e o povo. A credibilidade do STF junto à população está em franco declínio. Pesquisas de opinião confirmam essa erosão: em dezembro de 2024, apenas 12% dos brasileiros avaliavam o trabalho do STF como “bom/ótimo” – um índice que despencou de 31% dois anos antes. Por outro lado, os que consideram o desempenho da corte “ruim” ou “péssimo” saltaram para 43%. Essa perda de apoio popular é gravíssima para uma instituição que, embora não eleita, depende de autoridade legítima – ou seja, da aceitação geral de que suas decisões são justas e legítimas. Hoje, vemos ministros do STF sendo alvo de vaias e protestos, e uma parcela significativa da sociedade questionando a imparcialidade das decisões. Quando a cidadania deixa de ver na Suprema Corte um árbitro acima das disputas políticas, a própria ideia de Justiça imparcial fica comprometida.

Em conjunto, esses fatores revelam uma crise de virtù. Falta ao STF a phronesis (prudência) aristotélica para equilibrar princípios e realidade; falta a coragem cívica de decidir conforme a Constituição mesmo sob pressão; falta a temperança de se conter nos limites do cargo; falta a transparência que inspira confiança. Não se trata de demonizar a instituição ou negar sua importância, mas de reconhecer que algo essencial – um ethos virtuoso – esgarçou-se.

Como entender as raízes dessa conduta questionável? Aqui é útil recorrer às categorias de Max Weber, sociólogo que distinguiu duas éticas distintas na vida pública: a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Weber explica que toda ação ética pode seguir dois princípios fundamentalmente opostos: agir conforme suas convicções absolutas ou agir levando em conta as consequências. Na ética da convicção (ética de princípios ou de intenções), o indivíduo age fiel a certos valores ou crenças – “o cristão faz o certo e deixa os resultados nas mãos de Deus”, exemplifica Weber – sem se preocupar com os efeitos práticos de seus atos. Já na ética da responsabilidade, o agente considera os resultados previsíveis de suas decisões e assume a responsabilidade por eles, ajustando seu comportamento para evitar consequências desastrosas.

Weber não diz que uma é “boa” e a outra “má” – ao contrário, ele nota que ambas devem se complementar num estadista completo. O homem público ideal precisa ter convicções firmes e senso de responsabilidade pelos frutos de suas ações. Pois bem: o que vemos no STF é justamente um desequilíbrio entre essas duas éticas. Em certos momentos, ministros parecem pautar-se por uma “ética de convicção” unilateral – decidem conforme suas visões de mundo ou preferências ideológicas, custe o que custar, mesmo que isso signifique esticar a interpretação das leis ou afrontar outros poderes. Julgam estar “fazendo o certo” (por exemplo, “defendendo a democracia” ou “corrigindo omissões do legislador”), mas ignoram as possíveis repercussões institucionais e sociais de seus atos. O resultado é um choque com a realidade: medidas tomadas sem diálogo ou parcimônia geram ressentimento político e desconfiança popular, enfraquecendo a própria eficácia da decisão pretendida. Faltou a ética da responsabilidade, de antever efeitos e moderar a atuação para proteger a integridade da instituição no longo prazo.

Por outro lado, em outras situações, o tribunal dá sinais de excesso de “responsabilidade” mal-entendida – ou seja, cálculos políticos e pragmatismo em demasia, à custa de qualquer convicção sólida. Seria o caso das tais decisões “politicamente convenientes” já mencionadas. Quando o STF muda súbita e estrategicamente sua posição jurídica para se alinhar a ventos políticos, deixa transparecer uma preocupação excessiva com consequências (manter certa ordem ou atender expectativas do poder de turno) e insuficiente compromisso com princípios (consistência legal, igualdade de tratamento). Nesse caso, falta a ética de convicção – faltam a firmeza e independência que devem guiar a Justiça, “fiat justitia, pereat mundus” (faça-se a justiça, ainda que o mundo pereça), diriam os antigos.

Em resumo, o Supremo ora peca por idealismo sem responsabilidade, ora por pragmatismo sem princípios. Em ambos os cenários há déficit de virtù. A sabedoria de Weber nos lembra que sem equilibrar convicções morais com responsabilidade pelos resultados, a atuação de qualquer autoridade se torna destrutiva. No caso do STF, esse desequilíbrio compromete a sua função de poder moderador e guardião imparcial das regras do jogo democrático.

Retomemos as referências clássicas para iluminar a questão. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, definiu a virtude da phronesis (prudência, ou sabedoria prática) como a capacidade de deliberar bem sobre os meios adequados aos fins bons, aplicando a moral na prática concreta. É a prudência que guia o governante ou juiz a tomar decisões justas na medida certa, nem por apego cego a regras abstratas (falta de tato) nem por conveniência do momento (falta de caráter). A phronesis implica bom julgamento e excelência de caráter, unindo o conhecimento dos princípios com a sensibilidade ao contexto para agir de forma reta. Quando Aristóteles diz que a sabedoria prática degenera sem virtudes morais, ele ressalta: não basta astúcia ou inteligência técnica; se faltar retidão de caráter (virtudes como justiça e temperança), o sábio prático se torna apenas um calculista sem ética.

No STF atual, nota-se a ausência dessa prudência aristotélica. Falta a sabedoria prática de equilibrar o dever de cumprir a Constituição com a necessidade de manter a harmonia social e o respeito às instituições. Decisões precipitadas ou maximalistas, sem construir consensos ou considerar a receptividade na sociedade, indicam déficit de phronesis. Da mesma forma, gestos exagerados – sejam de rigor punitivo excessivo em uns casos, ou de leniência em outros – sugerem ausência daquele meio-termo virtuoso que Aristóteles tanto prezava. A virtude está no equilíbrio, e o STF, ao pender ora para um lado ora para outro de forma desproporcional, carece desse equilíbrio prudente.

Já Cícero, referência da filosofia republicana em Roma, legou a ideia de virtus republicana – as virtudes cívicas que devem adornar os homens públicos para sustentar a res publica. Em obras como De Republica e De Officiis, Cícero exaltou qualidades como justiça, honestidade, coragem e senso de dever como pilares do servidor público íntegro. Ele afirmava que virtude só tem valor real quando posta em prática na vida pública: “O melhor uso que se pode fazer da virtude é aplicando-a na República, convertendo a teoria em prática, as palavras em obras”. Ou seja, bela retórica e boas intenções de nada valem se não forem traduzidas em ações concretas pelo bem da comunidade. Cícero também dividia as virtudes em vários grupos – sabedoria e prudência; justiça social; grandeza e coragem; moderação e autocontrole – enfatizando que todas convergem para moldar o caráter do estadista. O governante ideal deve reunir sabedoria para discernir, justiça para agir corretamente, coragem para perseverar no bem e moderação para conter paixões.

Aplicando essas lições ao STF: quantas dessas virtudes republicanas conseguimos enxergar nos nossos magistrados supremos? Estariam eles convertendo teoria em prática, palavras em obras, como queria Cícero? Infelizmente, parece que a virtus pública anda em falta. A sabedoria ciceroniana – equivalente romano da phronesis – falha quando ministros não conseguem discernir o limite de sua atuação ou as exigências do bem comum acima de vaidades. A Justiça claudica se decisões dão impressão de parcialidade ou de dois pesos e duas medidas. A coragem cívica se esvazia quando se evita enfrentar temas espinhosos conforme o dever apenas para evitar atritos políticos; ou, pelo contrário, quando se age com atrevimento temerário que fragmenta a sociedade. E a moderação definitivamente tem faltado – seja no tom das manifestações públicas, seja na dosimetria de penas e medidas que por vezes parecem mais movidas por ímpeto punitivo ou voluntarismo “iluminado” do que por equilíbrio. Cícero nos lembraria que cumprir o dever para com a sociedade é imperativo para reverter o “caos moral” e salvar a República. O STF precisa resgatar esse sentido de dever cívico e de serviço humilde à coisa pública, ao invés de agir como um poder acima – ou à frente – dos demais cidadãos.

A crise de virtù no Supremo Tribunal Federal é, em última instância, sintoma de uma crise mais ampla de princípios em nossas instituições. Quando a mais alta corte do país perde a aura de imparcialidade, coerência e dedicação ao bem comum, todo o edifício republicano fica vulnerável. A solução não virá com panaceias imediatas ou meras trocas de cadeiras, mas requer um resgate ético e filosófico profundo. É preciso que o STF – e por extensão os demais poderes – promova uma autêntica reflexão interna sobre seus valores e sua missão na sociedade.

Resgatar a virtù institucional significa restaurar o caráter público do STF: seus integrantes precisam relembrar que ocupam uma magistratura, não um trono. Implica voltar a cultivar as virtudes clássicas – prudência, justiça, coragem e temperança – no exercício diário de julgar. Implica equilibrar convicções com responsabilidade, como Weber aconselha, para que decisões sejam moralmente fundadas e prudentes em seus efeitos. Implica, sobretudo, humildade para reconhecer erros e corrigir rumos. Não se trata de esperar perfeição dos ministros, mas de demandar integridade de propósito.

A urgência desse resgate ético-filosófico não pode ser subestimada. Sem confiança na Justiça, o pacto social se rompe. Sem virtudes cívicas, a letra da lei por si só não sustenta a legitimidade. O STF precisa reconquistar corações e mentes pela exemplaridade. Isso envolverá reduzir a exposição personalista, falar nos autos e não nos palanques; envolverá ater-se à Constituição mesmo quando for tentador agradar plateias ou poderosos; envolverá prestar contas com transparência à sociedade, lembrando que todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido.

Em suma, é hora de o Supremo retomar a senda da virtù. A República exige guardiães virtuosos – no sentido maquiaveliano de eficientes e comprometidos com o bem comum, e no sentido aristotélico-ciceroniano de virtuosos no caráter. Somente com essa recomposição de ética pública poderemos restaurar a confiança democrática nas instituições e assegurar que a autoridade do STF seja legítima e respeitada, não pelo temor ou imposição, mas pelo reconhecimento de sua integridade moral. Resgatar a virtù no Supremo Tribunal Federal é resgatar a própria ideia de Justiça que sustenta a nossa civilização política. É uma tarefa inadiável, em nome do futuro da democracia brasileira.

Fonte: * Rafael Leite Mastronardi, advogado, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal, é fundador do escritório Mastronardi Advocacia (www.matronardi.adv.br).
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